Medo nunca mais!

A carroça descia para o cemitério. Levava mais uma vítima do traiçoeiro Tibagi.
Por onde passava o veículo ia deixando, grudado no pó, o caldo escuro e mal-cheiroso que escorria do morto.

A menina, observando a cena, se aproximou, curiosa. Olhou atentamente para aquela coisa disforme, inchada, a pele – que havia sido negra – rachada e putrefata, olhos esbranquiçados.

_ “Credo, que coisa nojenta!”

_ “Cuidado. Não fala assim que o homem te pega à noite!” _ ralhou a mãe, brincando.

E eis que chega a noite, com todos os seus fantasmas.

Maria Annita, acordada, apavorada, suando em bicas tendo, na cama ao lado, uma Beralda morta de sono. Cada vez que fechava os olhos, a amiga se desesperava e dizia:

_ “Abre os olhos, Beralda!”

E Beralda abria os olhos. Mas, à luz da lamparina, sua pele negra deixava os olhos ainda mais brancos e neles a menina via os olhos esbugalhados do afogado. E, desesperada dizia:

_ Fecha os olhos Beralda!

E assim foi, por toda a longa noite!

E Maria Annita perdeu o medo, para sempre!

Compadre Sato

Naquele início de cidade, Zé Corrêa era um pouco de tudo. Mandava e desmandava. Acudia um, acudia outro… Pegava dinheiro emprestado pra ajudar pessoas – que dificilmente honravam o compromisso – e assim seguia a vida.

Sato era um japonês honesto, trabalhador, que tinha um filho atrás do outro. Uma filharada!  

Muito educado, falava baixo, calmamente. Respeitador das tradições, orgulhoso de sua raça. 

Um homem íntegro.

A admiração que sentia por Zé Corrêa era tão grande que, a cada criança que nascia, dava o nome de uma das pessoas da família Corrêa Porto.

E foi acumulando filhos até que, um dia, resolveu pedir que os batizasse, todos de uma vez! O mesmo padrinho, a mesma madrinha – Zé Corrêa e Anita – para todos. 

A partir de então passou a ser o Compadre Sato.

Um belo dia surgiu na cidade um japonês que pintou e bordou, até ser preso.

Compadre Sato, muito nervoso, indignado, procurou o compadre Zé Corrêa.

_ “Compadre, japoneis muiiiiiito inteligente, né! Muito mais inteligente que brasilero, né? Quando ele dá pra sê ladrão, tem que matá! Manda matá esse home! Sorta ele que nóis vamo matá!”

O honrado e pacato homem – e toda a colônia japonesa – estava tão inconformado com o patrício ladrão, que Zé Corrêa teve que tirar o bandido da cadeia durante a madrugada e levá-lo para o estado de São Paulo para que o malandro pudesse continuar vivo!

Expiando os pecados

A comitiva do casamento ia em frente apesar da chuva que não dava trégua. Na balsa do Porto Cascudo, perto do Ribeirão Grande, o cavalo de um dos convidados “pranchou” e o  cavaleiro foi parar dentro da água e se afogou.

O morto foi levado para a casa de Jacinto Loreto, a mais próxima, que mandou que a filha fizesse comida para aquela gentarada toda. Augusto reclamou de pronto: a mulher dele não ia cozinhar para aquela gente toda!

Indignado com a reação do genro, Jacinto vociferou:

_“Você casô mais ela é minha fia e quem manda sô eu!”

Essa foi sua sentença de morte!  Oculto pela noite, Augusto deu um tiro certeiro no sogro.

Na cidade corria solta a ideia de que, tivesse nascido homem, Dona Elisa seria padre. Toda pessoa que morria corria lá para encomendar o defunto: pegava o livrinho em latim e rezava, cantava…             

Quando o corpo de Jacinto chegou Dona Elisa já estava lá, à espera.  

A pequena igreja de tábuas estava lotada pois defunto morto a bala, todos queriam ver. Aquela movimentação toda, o burburinho causado pela aglomeração, o assoalho de madeira gemendo sob aquele peso todo, acabaram por despertar os insetos que viviam entre o assoalho e o chão de terra batida. Uma enorme caixa de marimbondos, nunca antes percebida, entrou em revolução: sentindo-se ameaçados os pequenos seres invadiram o salão e passaram a ferroar os fiéis.  

Foi aquela debandada! Dona Elisa, no entanto, continuou no mesmo lugar, estática, rezando sem parar, como se aqueles insetos não a estivessem atacando, impiedosamente, por baixo da longa saia franzida.

Aguentar aquele sofrimento foi a sua forma de ajudar o defunto a pagar seus pecados.           

O breviário

Boyzinho, do Zé Corrêa, e Filado, do João Pereira, eram os cães. Assim como os donos, passavam a maior parte do tempo juntos.  

Eram excelentes cachorros, mas tinham um problema: tudo o que conseguiam pegar disputavam entre si, brincadeira que acabava com o objeto de disputa destruído.

Foi o que fizeram quando viram, sobre o banco, aquele tentador livro com capa de couro.

Padre Chico, quando deu falta do breviário, só conseguiu resgatar dele um pedaço. Olhou para o livro, olhou para os cachorros e perguntou:

_ “Foi você, Boyzinho? Foi você, Filado?”

E ria, ria muito. 

Zé Corrêa intrigado com aquilo, não se conteve:

_ “Eles estragaram seu breviário e o senhor dá risadas? Por quê?”

_ “Porque agora eu não vou ter que ler tanto!”

Meninas

As duas meninas não davam sossego para o seu Rafael Martins. Toda vez que iam à mina levar comida para as lavadeiras pediam:

_ “Seu Rafael, dá garapa pra gente?”

E lá ia o homem para a moenda.

Num desses dias em que se levanta de pé esquerdo, sol muito quente, calor, poeira, seu Rafael atendeu prontamente ao pedido das meninas e foi moer a cana, enchendo vários litros.

Elas beberam o suco delicioso, com gosto.

Quando agradeceram, seu Rafael, olhando de um jeito de dar medo, disse:

_ “Bebe mais!”

Assustadas com a ordem, as garotas beberam mais. E mais. E mais. Cada vez que pensavam em parar o homem dizia:

_ “Coño! Bebe mais! Coño!”

As meninas quase morreram de medo e de tanto beber garapa.

E Seu Rafael livrou-se das duas para sempre!

Sabão de Cinza

Picava o toucinho para derreter a gordura (para a comida) e do torresmo era feito sabão: 

  •  1) Enchia um balaio com palha de milho (pra não   vazar) e em cima da palha colocava a cinza. A cinza “adequada”, como se dizia, era a queimada de paus bem escolhidos. Enchia o balaio de cinza;
  • 2) ia pingando água naquela cinza e ela ia soltando uma água preta, cáustica, chamada “adequada“;
  • 3) levava o torresmo ao fogo, em um tacho, e ia colocando o caldo de cinza sobre ele (isso quando não tinha soda);
  • 4) fervia até derreter tudo, engrossar e dar ponto de sabão;
  • 5) depois de quase frio, despejava a massa de sabão dentro da

palha de milho, a qual havia sido tirada a espiga sem desmontar. Quando secava formava bolas, que eram guardadas.

Maria Annita

O casamento de Adelina

Chovia tanto que parecia que o céu vinha abaixo. Tudo alagado: quintais, ruas, casas…
O rio rugia, mesmo à distância.

Adelina, no entanto, nada enxergava à sua volta. Hoje seria o dia mais feliz da sua vida: finalmente iria se casar com Amâncio.

Pulou da cama, correu para o banho. A água da bacia já estava temperada: nem quente, nem fria.
Lavou-se caprichosamente, vestiu a roupa de baixo, de renda, o saiote de arame e alpaca e, finalmente, o lindo vestido. Tudo branco. Olhou-se no espelhinho pendurado no prego: estava deslumbrante!

Mal acabara de se aprontar, ouviu o chamado na porta. O noivo, as testemunhas e o seu João Pereira – que iria dirigir o pé-de-bode até Sertanópolis já que, com aquela chuva, o juiz de paz não vinha até a cidade.

A distância era pouca, cerca de 20km, mas o barro – ah, o barro! – deixava a estrada muito difícil. E lá se foram eles.

Desliza pra cá, desliza pra lá, mas seu João Pereira, habilidoso, conseguiu levar o carro ao destino.

E os noivos se tornaram “marido e mulher, até que a morte os separe!”.

Felizes, retornaram. Agora, para a festa.

E o pé-de-bode desliza pra cá e pra lá, e de novo pra cá e pra lá. A chuva não dava folga e a estrada parecia ensaboada. Tanto que, ao chegar na Setilha, o carro emplastrou todo e não saiu mais do lugar.

Os homens desceram, limparam um pouco do barro e começaram a empurrar.  Empurra daqui, empurra dali e… nada!

Depois de muito empurra-escorrega-cai-levanta-empurra, metro a metro, conseguiram chegar.

Felizes, muito felizes, apenas os noivos, é claro; os outros estavam num mal humor de dar dó. Descendo do carro Adelina ajeitou o melhor que podia o vestido que fora branco.

Entraram na sala e….ninguém e nada!

A festa já havia terminado!

Adelina

No caminhão, sentada entre o motorista e o seu João Nórcia, Adelina, quieta, atenta, escutava os sábios conselhos daquele senhor.

Fazia horas que ele falava e falava, sobre os perigos da terra para onde estava indo.

_ “Cuidado, principalmente com os animais.

Cuidado. Tem muito mato, muita onça!”
Adelina, a cada “cuidado” se encolhia um pouco mais. Estava a ponto de pedir para voltar. Era isso mesmo que tinha de fazer. Na primeira oportunidade, na primeira carona, iria para Conceição do Monte Alegre e voltaria para Paraguassu Paulista.

Entre ouvindo e matutando, não se sabe se de medo ou por ter comido alguma coisa estragada, Adelina, suando frio, se torcia em cólicas. Quando viu que não dava mais pra segurar, gritou:

_ “ Pára que eu quero cagá!”

Parado o caminhão, Adelina correu pro mato. Aliás, tudo era um mato só!
Mal achou um local onde não poderia ser vista pelos dois homens, levantou a saia, abaixou a calçola e começava a se aliviar quando escutou o primeiro rugido. Que coisa horrível!

Paralisada, ficou escutando. Quando veio o segundo – obra dos homens, é claro – a  moça levantou rapidamente a calçola, soltou a saia e correu, o mais que podia, pro caminhão, fezes liquefeitas escorrendo-lhe pelas pernas.

E foi assim, em meio a um fedor horrível, que Adelina chegou em Primeiro de Maio.

A pescaria

_ “Anita, bota a gordura no fogo que eu vou buscar o peixe!”


Assim falando, José e João, com varas de pesca e iscas, enveredaram para os lados do Tibagi.

Os amigos, conversando, subiram o rio pela margem, em busca do lugar ideal para jogarem os anzóis.

O dia estava muito quente e logo a caminhada e o calor deram sede. Os amigos pararam para beber um pouco d’água do rio, muito limpo, naqueles tempos sem poluição.

Saciada a sede, olharam em volta. Não. Aquele ainda não era o lugar ideal. E continuaram na sua caminhada.

Após a primeira curva, um cheiro desagradável chamou-lhes a atenção. Olharam em volta e viram, enroscado na galhagem, um corpo putrefato, inchado e carcomido pelos peixes.
José olhou para João. João olhou para José. E começaram a vomitar. Haviam bebido água de morto!

Naquele dia não teve peixe para o almoço!  

Vingança

A velocidade da correnteza era impressionante e trazia consigo árvores centenárias; da mata ciliar, apenas as copas mais altas apareciam.
Os cabos de aço, liberados da balsa – que jazia em uma das margens – ricocheteavam violentamente, provocando uivos de causar arrepios.

Lutando contra a violência da água o barqueiro levava as duas senhoras e a criança.  Depois da longa espera Anita havia conseguido convencer a avó a entrar no barco. A velha desde então encolhera-se sobre o rústico banco, cobrira a cabeça com uma mantilha de renda negra e fechara firmemente os olhos. O movimento dos lábios sem cor indicava que não parava de rezar um instante.

Olhando para aquela mulher de aparência tão indefesa, pouco – ou nada – se conseguia apreender da sua forte personalidade. Apenas o marido a entendera e suportara.

A garotinha à sua frente – fortemente abraçada pela mãe – indiferente ao pavor da bisavó, colocava os dedinhos na água barrenta enquanto observava, com interesse crescente, os cabos de aço batendo na água.

Depois de uma boa meia hora o barqueiro, habilmente, encalhou na margem direita do Tibagi, pulou do barco e o prendeu em uma estaca improvisada. Anita suspirou aliviada. José as esperava; logo estariam em casa. A menina correu para o colo do pai que a abraçou com carinho enquanto ajudava as outras mulheres.

Dona Nathália mal podia manter-se em pé, tremendo toda. Lágrimas desconsoladas caiam enquanto amaldiçoava o marido por ter morrido, obrigando-a  a viver nesse fim de mundo.

Ah! Como odiaria aquela terra! 

Como em todas as manhãs – inclusive domingos e feriados – a velha senhora tirava a poeira da única relíquia que trouxera consigo: um enorme espelho de cristal bisotado cuja moldura era uma verdadeira obra de arte.

Voltava então aos tempos de criança, quando era sua mãe que o fazia, na grande sala de jantar da casa da fazenda, enquanto brincava de bonecas com as filhas das escravas. Ah! Como era bom aquele tempo!

Estava devolvendo-o ao lugar de costume, na parede atrás da porta, quando esta foi aberta violentamente. Dona Nathália, paralisada ao ver o espelho aos cacos, quando viu surgir o rosto assustado da estabanada Beralda, saiu do estado de choque e passou a gritar e blasfemar histericamente.


A partir desse dia a velha passou a definhar mais e mais, sem nunca deixar de demonstrar o quanto detestava aquela menina. Beralda, por sua vez, se vingava com caretas e micagens.

Até o dia em que chegou sua hora.

Deitada no caixão roxo-batata com galões amarelo-ouro, toda de preto, cabelos, longos e brancos, escorridos ao redor do rosto magro e encarquilhado, dentadura quase escapando da boca murcha, Dona Nathália era um defunto assustador.

Mensageiros tinham sido enviados a todas as águas para avisar do velório e as pessoas não paravam de chegar. Eram bules e mais bules de café, sanduíches de mortadela e batatas-doce assadas na fogueira.

Carpideiras revezavam-se aos pés do caixão. Crianças brincavam ao redor da fogueira. Moços aproveitavam para namorar. Enterros – assim como casamentos – eram acontecimentos sociais dos mais importantes onde quase nunca havia novidades.

Feito o sepultamento, a família ficou só.
Beralda não conseguia conter o choro. Choro de puro pavor! Não conseguia ficar sozinha nem para ir ao banheiro. Deixou de comer, emagreceu. Quando dormia sonhava com a velha levantando do túmulo dizendo “vim te buscar, negrinha!”. Então acordava aos prantos, gritando muito.
Quase morreu!
De medo!
Dona Nathalia estava vingada!

O banquete

O jantar estava delicioso. O leitão tenro, bem temperado, couro estalando de tão torradinho, pururuca. Parecia dia de festa, tanta a fartura.

Kurt, o dono da casa, alemão forte e rosado, cabelos tão claros que pareciam brancos, auxiliava a esposa a servir o amigo.

Zé Corrêa comia com gosto, apesar de acostumado à mesa farta. A esposa do amigo era excelente cozinheira. Mulher trabalhadeira e muito econômica, sempre na labuta junto com o marido, estava ajudando-o a amealhar um bom patrimônio.

Kurt era conhecido pela honestidade, mas, também, pela sovinice, se é que assim se podia falar de quem tudo aproveitava (tempos difíceis, aqueles!). Da beterraba, comiam até os talos, refogados.  Da casca da banana faziam bolinhos (deliciosos!). As cascas do abacaxi eram fervidas, coadas e o caldo, engrossado com farinha de trigo, virava uma sobremesa leve e saborosa.

Por essas e por outras é que José estava tão surpreso com o convite para o almoço. Terminada a refeição os homens foram para a varanda fumar um palheiro, momento em que aproveitou para elogiar e agradecer.

_ “Ora, seu Zé. Não foi nada demais. Afinal era justo pois o senhor é que me deu o leitão!”

Zé Corrêa olhou para o amigo sem entender nada. Criava porcos, era verdade, mas criava-os para vender e não havia dado nenhum a Kurt. Inda mais agora que estavam com uma doença que ainda não sabia reconhecer. No dia anterior mesmo havia morrido um pequeno leitão….

Enquanto pensava nisso entendeu a que o alemão se referia, mas pedia a Deus para estar enganado! Seu estômago começou a revoltar-se. Sua visão ficou turva, enquanto aguardava o anfitrião concluir a fala.

_ “Sabe como é. A vida tá dura e a gente não pode desperdiçá nada. Eu catei aquele leitãozinho que o senhor jogou fora e a mulher preparou pra nós. Seu Zé, depois de assado o bichinho fica limpinho de qualquer doença. Então, prá que desperdiçá?”

A volta para casa foi um pesadelo pois cada vez que pensava no que havia comido, vinha aquela ânsia de vômito!