Primeiro de Maio, Paraná Vila Anita

Sou uma colecionadora de histórias.

Ao longo de mais de 30 anos anotei, gravei e arquivei relatos de pessoas da minha cidade, muitas das quais já não estão entre nós.

Tudo começou com minha avó Anita, com quem combinei escrever um livro com os “causos” que ocorreram desde a entrada dela e meu avô – eternos apaixonados – no local em que, mais tarde, se formou Primeiro de Maio.

Ela dizia que as coisas tristes deviam ser esquecidas por isso só me contava fatos que eu pudesse transformar em crônicas boas de ler. Ela tinha razão, mas acontece que a história não se resume aos sucessos e muita coisa ficou de fora, longe do meu alcance, já que não as vivi.  Aliás, uma coisa que sempre me impressionou é o fato de sentir saudades de uma época em que não vivi.

Foram horas e horas aos pés da sua cadeira de balanço no terração da antiga casa da Villa Anita – mais conhecida como Bosque – tomando notas enquanto a observava crochetar uma de suas colchas ou bicos em panos de prato.

Após algum tempo passou ela mesma a fazer anotações, com sua letra já trêmula e irregular mas inconfundível. Letra de mulher inteligente, lutadora, forte. Letra que denunciava a cronologia do corpo, impossível de captar de sua mente arguta de mulher à frente de seu tempo, muito à frente.

Esses escritos eu guardo como se guarda um tesouro.

Meu último encontro com ela foi durante o sono. Estava em viagem, em um hotel, quando veio me visitar. Nos sentamos aos pés da cama e conversamos por algum tempo. Pedi a ela que me levasse junto, ao que respondeu que meu tempo aqui ainda era, e seria, necessário. Chorei muito, nos abraçamos e ela foi embora. De manhã, quando acordei, senti a grandeza do nosso encontro e guardei aquele momento com um carinho imenso.

Isso já faz muitos anos, como também já faz muitos anos que ela se foi. A vida passa muito rápido e quando não podemos – ou não sabemos – dar a devida importância aos fatos, o tempo nos atropela. Nossos escritos foram cuidadosamente guardados em um pequeno arquivo e ali ficaram até que a vida trouxesse pra perto de mim outra leoa, a outra Anita, a Maria Annita, minha mãe.

A História do Bosque

Só quem viveu no início da formação de uma cidade é que pode preencher as lacunas de sua história. Esse é o caso da minha mãe, que este ano completará 92 anos, com muita lucidez.

Ela chegou em Primeiro de Maio há 91 anos, juntamente com seus pais, José Correa Porto de Abreu – que mais tarde foi o primeiro prefeito e sua mãe, Ana Ferreira Góes, a primeira professora. Foram eles os fundadores da cidade.

Minha mãe, que gosta muito de falar sobre o tempo antigo, me narrou fatos muito interessantes sobre esse início, os quais já havia ouvido da minha avó, anos atrás.

O norte do Paraná foi dividido em sítios e fazendas que foram vendidos a pessoas que quisessem desbravar a região. Entre os muitos que adquiriram terras, estavam meu avô e seu irmão Avelino Correa Porto de Abreu, que não chegou a viver na região.

Nessas terras, à medida em que os trabalhadores foram chegando para a derrubada da mata e posterior plantio do café, formou-se um agrupamento de pessoas que passaram a viver muito próximas umas das outras. Foi aberta uma rua onde patrão e empregados construíram casas, como se um povoado fosse. Para se ter uma ideia, no armazém da fazenda vendia-se de tudo, inclusive máquinas de costura.

Nessas terras, à medida em que os trabalhadores foram chegando para a derrubada da mata e Com a incidência da maleita devido à proximidade com o Rio Tibagi, nasceu e cresceu a ideia de procurarem um outro lugar para “transferir” o pequeno “povoado”.

Encontrado esse local ideal, Zé Correia, como era conhecido o líder do movimento, negociou as terras com o proprietário, Sr. Rigoni. Essas terras faziam limite com as do Sr. Frutuoso e as do Sr. Rafael Martins, entre outros.

Já proprietário das terras, Zé Correia projetou uma cidade com traçado regular e ruas com números. Reservou um quarteirão para as igrejas pois seu desejo, que não se concretizou, era de que todas dividissem o mesmo espaço. Reservou também um quarteirão para a escola. Os demais lotes foram vendidos ou doados, para quem quisesse ali construir uma casa ou instalar um comércio.

Todos os proprietários de terras ao redor – alguns deles também dividiram a terra em lotes para vender – foram procurados para que viessem morar no povoado já que, para adquirir a categoria de distrito, seria necessário um certo número de residências e de moradores.

Concretizada a mudança do “povoado” para esse local, Zé Correia alugou uma casa – onde acabou vivendo por anos e onde também funcionou o primeiro cartório – e passou a procurar um terreno para construir sua própria casa.

O local que mais lhe agradou era de propriedade do Sr. Frutuoso, de quem adquiriu os oito alqueires que iam do Rio Jacu até as terras do Sr. Manoel Martins. Dessa propriedade Zé Correia reservou “um alqueire e três quartos” para construir a casa que foi sua e de Dona Anita até o final de suas vidas: o local que hoje todos conhecem por Bosque.

Um cartão postal da cidade, um tesouro, uma linda reserva da mata nativa, preservada a duras penas.

E assim tudo começou…

Maio, 1927.

Monte Alto, Taquaritinga, Itápolis, Marília, Paraguaçu Paulista, Conceição do Monte Alegre, Porto Casanova. Finalmente, entravam no Paraná.

Após três longos e cansativos dias, a viagem estava no fim. Bastava atravessar um último rio, o Limoeiro, para chegar à fazenda.

De repente o motor do caminhão, novinho em folha, falhou, engasgou e morreu.

Na ânsia de chegar, Zé Corrêa esquecera de colocar gasolina. Joaquim Maria e os outros peões pegaram um dos galões e começaram a entornar o combustível no tanque.

A noite estava muito escura. Prestativo, um dos peões acendeu um palito de fósforo e o aproximou da boca do reservatório: o precioso líquido não poderia ser desperdiçado.

Do palito para a gasolina, o fogo não demorou a passar. Se alastrou rapidamente, tanque adentro.

A explosão, ensurdecedora, não demorou a se ouvir.

Ninguém morreu, ninguém se feriu seriamente, mas tudo queimou.

Tudo o que a comitiva trouxera fora consumido pelas labaredas.

Restou a roupa do corpo.

E a vontade de recomeçar.

Noite escura

A pequena vila estava iluminada, aqui e ali, pelos Petromax. Boteco lotado, como em toda noite de sexta-feira.

A luz oscilante dos lampiões, o cheiro de querosene queimado, a fumaça negra que subia em espirais e se acumulava nas telhas formando grosso picumã, nem eram percebidos.

As frestas das paredes de tronco de palmito deixavam entrar o frio, mas os homens não se incomodavam: estavam há horas jogando cartas e bebendo cachaça da boa.

Da única mesa do estabelecimento, terminada mais uma partida de truco, o encorpado alemão se levantou, discretamente apoiado por um companheiro. Seu rosto rubro indicava o grau etílico de seu sangue. Despediu-se dos amigos e começou a descer a rua em direção ao Bosque onde tinha seu quarto, na casa do Zé Corrêa.

Às vezes quando os joelhos davam uma bambeada, a barra da roupa se arrastava no pó do caminho sem calçamento. A hora tardia e o ar frio haviam espantado as pessoas e a rua estava deserta.

Já próximo de casa, percebeu que estava sendo seguido. Não se importou. Fosse o que fosse, inimigo não seria.

Mas, de repente, estacou! Será que ouvira corretamente ou estaria bêbado demais?

_“Vamo dá uma vortinha, dona?” soou a voz.

O choque fê-lo ficar sóbrio de pronto. Voltou-se e encarou firmemente o abusado, como se isso significasse alguma coisa, naquela escuridão.

_“Xuvenal, você pensa eu ser mulher viúva? Eu ser padre Chico!” revidou o indignado padre.

Juvenal, notoriamente o maior mulherengo da vila, havia sido atraído pela batina negra que fazia o som peculiar das saias longas roçando pernas femininas!

Joaquim Maria

Joaquim Maria era um homem alto, bem apessoado; só usava terno de linho claro, que contrastava com sua pele escura. Era um rapagão!

Da boa paz, de ótimo coração, mas como bebia!

Com o passar dos anos a bebida foi acabando com ele, física e mentalmente. Passou a morar em um quartinho nos fundos do cartório e a viver de pequenos biscates e da caridade do amigo que o trouxera para ali.

Joaquim tornou-se uma figura impressionante!

Pele maltratada, corpo envergado, nariz cada vez mais adunco, uma tosse que era ouvida de longe, voz enrouquecida, pés sempre arrastando pelo chão como se não aguentassem o peso do corpo.

Os ternos de linho de outrora deram lugar a andrajos. E, como se tudo isso não bastasse, sempre trazia nos ombros um machado.

Naquele dia Dona Anita estava trabalhando no cartório quando chegaram dois estranhos solicitando um documento que jamais poderia fornecer. Conversa vai, conversa vem, logo estabeleceu-se uma discussão acalorada, as vozes subindo além da conta.

Dona Anita, sozinha, já não sabia mais o que fazer quando, de repente, surgiu aquela impressionante figura.

Joaquim parou bem embaixo do batente da estreita porta, tirou o machado do ombro, bateu com força no chão e disse:

_”Tá acontecendo arguma coisa aqui, Donanita?”

Os trambiqueiros voaram porta afora, apavorados, e nunca mais se ouviu falar deles!

Maria do Getúlio

Maria do Getúlio. Assim era conhecida aquela mulher.

Não era Maria, ou Maria Parteira. Era Maria do Getúlio. Getúlio era seu marido e, até hoje, não sei o que fazia, no que trabalhava.

Mas Maria, sim: Maria era parteira.

E como era importante essa Maria!

Trazia ao mundo quase todos os bebês. O médico só era chamado em último caso, quando o parto era muito difícil. E às vezes, é claro, não havia como chamar o médico e era ela, a Maria do Getúlio, que enfrentava o problema.

E não foi diferente naquele dia.

Correu para atender a moça em trabalho de parto. Era o quarto filho, mas parecia ser o primeiro, tal a dificuldade.

Maria do Getúlio tentou de tudo.

Empurrou a criança.

Puxou a criança.

E nada!

Quando viu que mãe e filho iriam morrer, passou a arrancar a criança aos pedaços.

Matou a criança para salvar a mãe.

Usou ferros.

Mas… não conseguiu!

E, naquele dia, nas suas mãos, pelas quais tantos bebês haviam nascido e que tantas mães haviam salvado, morreu a própria filha.

E se o lampião apaga?

Era sábado e o movimento de carroças na avenida, intenso. O entra e sai das lojas sugeria a prosperidade da vila.

Sentado em frente à venda, Porfírio tocava com paixão. O tosco banco, branco de tanto lavado, gemia e entortava sob seu peso. Ficou ali por horas, até que o ar fresco da noite o levasse para casa.

Caprichosamente colocou o violão na prateleira. Lavou-se na bacia de ágate, apagou a lamparina e deitou-se ao lado de Maria que, instintivamente, encolheu-se no seu canto para ceder-lhe espaço.

As primeiras luzes da manhã a encontraram soprando as brasas para avivar o fogo. Coou o café, sentou-se no rabo do fogão com uma caneca da bebida, doce e fraca, em uma das mãos e uma grossa fatia de pão sovado na outra.

Não Estranhando a quietude do marido, voltou ao quarto. Esperou algum tempo, acercou-se dele: estava pálido, o peito não se movia. Chacoalhou-o, mas…nada!

Saiu correndo, assustada, atrás de Dona Anita. A farmacêutica era o único “médico” das redondezas.

Mas nada se pode fazer e Porfírio foi dado como falecido.

Pouco a pouco as pessoas foram chegando, até que toda a vila estava por ali. Que dia mais apropriado para morrer o domingo!

Zé Corrêa colocou as mãos sobre as do morto, orou por ele e afastou-se, pensativo. Deu uma volta, conversou um pouco, retornou para o lado do caixão. Observou longamente o falecido, novamente orou com as mãos sobre as dele e se retirou, ensimesmado.

À tarde o cortejo fúnebre seguiu pelas ruas poeirentas até a pequena igreja – o padre aguardava para encomendar o corpo – e dali partiu para o cemitério que, graças a Deus, ainda era habitado por poucos.

Zé Corrêa esperou a cerimônia chegar ao fim e, sem alarde, pediu ao coveiro que deixasse o caixão aberto até o dia seguinte. Anita, que percebera seu ar taciturno, esperava. Sabia que, fosse o que fosse, o marido dividiria com ela.

“As mãos dele estavam quentes!”, Zé Corrêa não tardou em dizer.

A mulher levou um choque! Confirmara a morte de Porfírio mas, afinal, não era médica. Olhou para o marido, assustada, sem coragem de verbalizar sua dúvida.

A noite chegou e, com ela, a chuva que se anunciara desde a manhã. À medida em que sua intensidade aumentava, aumentava a inquietude de Zé Corrêa. Era já bem tarde quando não aguentou mais. Levantando-se de supetão pegou o lampião que estava sobre a mesa e puxou a mulher pela mão: “Vamos fechar o caixão!”

Tremendo por dentro, Anita aquiesceu prontamente. O caminho para o cemitério estava escuro; nuvens pesadas escondiam o clarão da lua. Percorreram todo o trajeto em silêncio, a água escorrendo pelas capas de chuva.

Chegando à beira da cova – botas afundadas no lamaçal grudento – Anita, suando frio, pegou o lampião.

Já no primeiro passo Zé Corrêa escorregou, caiu de costas e foi deslizando até estatelar-se lá no fundo, em cima do pobre, e agora frio e encharcado Porfírio.

Gemendo alto – de dor ou de medo não se sabe – levantou-se e correu

a escalar a parede.

Quando conseguiu sair, enlameado até o último fio de cabelo, segurou firmemente o lampião com uma das mãos; com a outra, agarrou a mão de Anita e, sem dizer nada nem olhar pra trás, tomou rapidamente o caminho de casa.

Porfírio que ficasse para o dia seguinte!

O Ganso

Os três amigos passavam em todos os lugares pedindo votos.

Essa era uma via-sacra que se repetia a cada quatro anos: água por água, sítio por sítio, casa por casa. Eleitor que não fosse “visitado” ficava ofendido pela desfeita.

Pararam o carro na estrada principal e enveredaram por cerca de 500 metros até a casa.

Muito bem recebidos, conversaram com a família, tomaram café, contaram alguns “causos” e se despediram; não sem antes, é claro, de receberem a promessa de alguns votos.

Já caminhando em direção ao carro escutaram uma barulheira danada: como se cão de guarda fosse, um ganso vinha, à toda, para atacá-los.

Marinho, o candidato a prefeito, virou-se na sua habitual amabilidade, pedindo ao ganso:

_ “Calma fião! Calma fião!”, enquanto gesticulava, tentando acalmar a ave.

Vendo aquela situação Zezão – o próprio nome era indicativo do seu tamanho – afastou os amigos para o lado:

_ “Isso não adianta! Ele é bicho, não entende! Deixa comigo!”

Ao mesmo tempo em que falava, Zezão partiu para a ação: deu um chute de bico no animal, que subiu, deu um salto no ar e caiu no chão, duro, estatelado.

Falecido!

O dono do ganso, ao ver sua ave de estimação naquele estado, gritou lá da janela, desesperado:

_”Seus fio da puuuuuta!”

E então, a partir desse dia, passou a ser inimigo declarado dos três!