A velocidade da correnteza era impressionante e trazia consigo árvores centenárias; da mata ciliar, apenas as copas mais altas apareciam.
Os cabos de aço, liberados da balsa – que jazia em uma das margens – ricocheteavam violentamente, provocando uivos de causar arrepios.
Lutando contra a violência da água o barqueiro levava as duas senhoras e a criança. Depois da longa espera Anita havia conseguido convencer a avó a entrar no barco. A velha desde então encolhera-se sobre o rústico banco, cobrira a cabeça com uma mantilha de renda negra e fechara firmemente os olhos. O movimento dos lábios sem cor indicava que não parava de rezar um instante.
Olhando para aquela mulher de aparência tão indefesa, pouco – ou nada – se conseguia apreender da sua forte personalidade. Apenas o marido a entendera e suportara.

A garotinha à sua frente – fortemente abraçada pela mãe – indiferente ao pavor da bisavó, colocava os dedinhos na água barrenta enquanto observava, com interesse crescente, os cabos de aço batendo na água.
Depois de uma boa meia hora o barqueiro, habilmente, encalhou na margem direita do Tibagi, pulou do barco e o prendeu em uma estaca improvisada. Anita suspirou aliviada. José as esperava; logo estariam em casa. A menina correu para o colo do pai que a abraçou com carinho enquanto ajudava as outras mulheres.
Dona Nathália mal podia manter-se em pé, tremendo toda. Lágrimas desconsoladas caiam enquanto amaldiçoava o marido por ter morrido, obrigando-a a viver nesse fim de mundo.
Ah! Como odiaria aquela terra!
Como em todas as manhãs – inclusive domingos e feriados – a velha senhora tirava a poeira da única relíquia que trouxera consigo: um enorme espelho de cristal bisotado cuja moldura era uma verdadeira obra de arte.
Voltava então aos tempos de criança, quando era sua mãe que o fazia, na grande sala de jantar da casa da fazenda, enquanto brincava de bonecas com as filhas das escravas. Ah! Como era bom aquele tempo!
Estava devolvendo-o ao lugar de costume, na parede atrás da porta, quando esta foi aberta violentamente. Dona Nathália, paralisada ao ver o espelho aos cacos, quando viu surgir o rosto assustado da estabanada Beralda, saiu do estado de choque e passou a gritar e blasfemar histericamente.
A partir desse dia a velha passou a definhar mais e mais, sem nunca deixar de demonstrar o quanto detestava aquela menina. Beralda, por sua vez, se vingava com caretas e micagens.
Até o dia em que chegou sua hora.
Deitada no caixão roxo-batata com galões amarelo-ouro, toda de preto, cabelos, longos e brancos, escorridos ao redor do rosto magro e encarquilhado, dentadura quase escapando da boca murcha, Dona Nathália era um defunto assustador.
Mensageiros tinham sido enviados a todas as águas para avisar do velório e as pessoas não paravam de chegar. Eram bules e mais bules de café, sanduíches de mortadela e batatas-doce assadas na fogueira.
Carpideiras revezavam-se aos pés do caixão. Crianças brincavam ao redor da fogueira. Moços aproveitavam para namorar. Enterros – assim como casamentos – eram acontecimentos sociais dos mais importantes onde quase nunca havia novidades.
Feito o sepultamento, a família ficou só.
Beralda não conseguia conter o choro. Choro de puro pavor! Não conseguia ficar sozinha nem para ir ao banheiro. Deixou de comer, emagreceu. Quando dormia sonhava com a velha levantando do túmulo dizendo “vim te buscar, negrinha!”. Então acordava aos prantos, gritando muito.
Quase morreu!
De medo!
Dona Nathalia estava vingada!